Se sou daimista, posso dizer que sou cristão? (parte I)
"Como seguidor da doutrina daimista, posso afirmar que ela é genuinamente cristã?” Este texto explora nuances dessa questão, destacando que, embora a doutrina daimista tenha se desenvolvido com expressões e termos cristãos em seus hinários, a crença em elementos como a reencarnação ou a menção a entidades espirituais não retira a identidade cristã. Para constatar esta identidade, é fundamental compreender como os pilares do Cristianismo — como o monoteísmo, a Santíssima Trindade e Jesus Cristo como o Verbo encarnado e Salvador — se expressam na doutrina daimista.
10/21/20256 min read


A. As concentrações e os hinários
No trabalho de resgate histórico da importância das concentrações dentro das práticas da doutrina daimista, pode ter parecido aqui ou acolá que os serviços bailados de hinário não tenham tido tanta importância assim, quase como se houvessem sido somente momentos de louvor e alegria em Deus.
Não é desse jeito e, se assim pareceu, é que, ao se recobrar a importância do que estava esquecido, aconteceu exagero corretivo, pois é difícil dizer qual foi mais crucial, concentrações ou hinários, na história e no coração da doutrina.
Mestre Irineu manteve o seu trabalho entre maio de 1930 e junho de 1936 com apenas concentrações e serviços de cura. Até então não se podia, com propriedade, falar em “doutrina” (do latim doctrina: ensino, instrução, formação teórica, arte, ciência, teoria, método), pois eram exclusivamente práticas ordenadas e periódicas de autoconhecimento sob efeito do daime ou eventuais rituais de cura.
A partir do recebimento dos hinos, os de mestre Irineu e os de quatro de seus seguidores (Germano Guilherme, João Pereira, Maria “Damião” e Antonio Gomes), é que a doutrina daimista pôde se expor gradativamente e mestre Irineu pôde estabelecer o conteúdo doutrinário para estudo aprofundado durante os hinários bailados, durante as concentrações e nas atividades diárias, e para a adoção de suas orientações morais no ordenamento do dia a dia comum.
Neste ponto, um ensinamento de S. Tomás de Aquino é bem precioso, pois ele resumiu no ano 1273, em um sermão, a estrutura da vida moral e teológica segundo o seu pensamento e a doutrina católica (embora, como orientação geral, seja aplicável a qualquer doutrina religiosa): “três ciências são necessárias ao homem para sua salvação: o conhecimento das coisas que deve acreditar, o conhecimento das coisas que deve desejar e o conhecimento das coisas que deve realizar”.
Dito de outro modo: a) a ciência do que se há de crer (fé), no que diz respeito ao conhecimento das verdades reveladas por Deus, pois, para ser salvo (do latim salvus: inteiro, intacto) o ser humano precisa ter a ciência (o conhecimento e a aceitação) dos mistérios divinos; b) a ciência do que se há de desejar (esperança), pois o ser humano deve saber que seu desejo final é a bem-aventurança eterna (a visão beatífica de Deus) e deve esperá-la de Deus; c) e a ciência do que há de operar (caridade/ação correta), pois o ser humano precisa saber como agir impecavelmente, amando a Deus e ao próximo, para viver em conformidade com a vontade divina e poder ser salvo.
Portanto, a salvação pode decorrer da união correta da mente (crendo) com a vontade (desejando o bem supremo) e com a ação correta (agindo conforme à Lei), e tudo isto é ensinado e explicado apenas nas letras dos hinos (e, em seu tempo, nos ensinamentos verbais de mestre Irineu), razão pela qual sem eles não existiria propriamente “doutrina”, por mais importante que já fosse o autoconhecimento ordenado e sistematizado nas concentrações com daime.
Em 1934, quando a família de dona Percília se aproximou de mestre Irineu, ele tinha apenas o primeiro hino, que recebera havia décadas, quando estava no Peru e bem antes de vir para Rio Branco, no Acre: “Lua Branca”, no qual já se explicitava a devoção a nossa Senhora da Conceição. A seguir, recebeu os hinos “Tuperci”, “Ripi”, “Formosa” e “Refeição”. Mas, salvo no primeiro, só a partir do sexto hino, “Papai Paxá” (vindo após o primeiro serviço bailado de hinário, que ocorreu em meados de 1936), é que começaram a surgir e se estabilizaram expressões típicas do Cristianismo, como “salvação”.
Neste sentido, é importante lembrar: a doutrina daimista teve origem inspirada e foi revelada a mestre Irineu, o que é bem diferente de acreditar que ele “a criou”.
Assim, é possível supor que o próprio mestre Irineu fosse sendo surpreendido pelo surgimento e estabelecimento da doutrina, já que até o hino “Refeição” seus hinos somente mencionavam entidades espirituais de cor local, com o que ele ficou mais de 20 anos tendo consigo o hino “Lua Branca”, o primeiro, mas nunca o cantou grupalmente, centrando-se por anos em concentrações em grupo e em serviços de cura para quem pedisse.
No hino 10 ele cantou:
“Mamãe me ensina,
eu devo aprender.
Na eternidade
é quem pode me valer.
Dos raios do sol
é que me vem a luz,
eu não devo esquecer-me
do nome de Jesus”.
É provável também que mestre Irineu tenha descoberto na prática o quão rico era cantar os hinos em estado alterado de consciência, já que a cada vez que se canta os hinos — os mesmos hinos! — diferentes ensinamentos são expostos para conhecimento e compreensão.
Aproveito aqui o ensinamento de uma antropóloga brasileira, Beatriz Labate: “sabemos que a eficácia deste [método] não está (apenas) na letra ou na música [dos hinos], mas na execução com o corpo, com a mente, em um registro de consciência alterada, para a qual o hinário funciona como uma espécie de código de barras que desencadeia uma multiplicidade de significados controlados, mas extremamente poderosos”.
S. Agostinho ensinou em seu livro Sobre a potencialidade da alma: “quero que reflita mais amplamente, e por mais tempo, quantas coisas são contidas na memória, e ali podem ser conservadas, e que, por isso mesmo, situam-se na memória. Que imensa profundidade e amplitude, que imensidade de coisas pode estar contida na alma?”
Por isso é que, em sucessivos serviços nos quais se canta hinos, cada vez é uma vez diferente, por mais que os hinos sejam iguais: segundo S. Agostinho, “ela [a alma] traz todo o conhecimento, e, quando vai aprendendo com a idade, nada mais faz senão recordar”.
Quanto à possibilidade de o próprio mestre Irineu ter sido surpreendido pelo surgimento da doutrina de Deus, até Jesus Cristo tomou-se de espanto ao curar involuntariamente a hemorrágica que Lhe tocara a franja: “Jesus perguntou: ‘Quem foi que me tocou?’ Como todos se escusassem, Pedro disse: ‘Mestre, é o povo que te aperta e te comprime’. Mas Jesus disse: ‘Alguém tocou em mim; eu senti uma força sair de mim’”. (Lucas, 8: 45-46)
B. Os traços definidores da fé cristã.
Portanto, antes de entrar em uma abordagem mais densa e detalhada sobre o que permite ou não caracterizar um (ou uma) daimista como cristão (ou cristã), o que vai requerer a exposição e análise de hinos da base doutrinária daimista e farei adiante, pensei em propor uma sucinta exposição dos principais aspectos de crença que definem uma pessoa como cristã.
Os aspectos de crença que definem um cristão, independentemente da denominação (Catolicismo, Protestantismo, Ortodoxia, etc.), abrangem:
A crença em um único deus (Monoteísmo): o Cristianismo é uma religião abraâmica e monoteísta, que adora e louva um único Deus;
A Santíssima Trindade: os cristãos creem que este único Deus existe e se manifesta em três Pessoas: Deus Pai, Deus Filho (em Jesus Cristo) e Deus Espírito Santo;
Jesus Cristo como Filho de Deus e Salvador: os cristãos creem que Jesus Cristo é o Messias prometido, o Filho de Deus feito carne, que morreu na cruz para redimir a humanidade de seus pecados e ressuscitou corporalmente ao terceiro dia, como está registrado nos Evangelhos;
Salvação pela graça mediante a fé: os cristãos têm convicção de que a salvação e a vida eterna são um dom gratuito de Deus (graça), recebido por meio da fé em Jesus Cristo e não por méritos ou obras humanas;
O amor a Deus e ao próximo: os cristãos são chamados a seguir os dois maiores mandamentos: amar a Deus sobre todas as coisas e amar ao próximo como a si mesmos, agindo de modo correto com os outros e consigo mesmos.
A fé em Jesus Cristo como Senhor e Salvador tem base nos ensinamentos dos Evangelhos e na crença na Trindade, que são os pilares fundamentais que definem a identidade cristã, assim como os hinos da base doutrinária definem o perfil cristão da doutrina daimista
Neste cenário, acreditar que existe reencarnação ou mencionar Ripi, Tarumim e Papai Paxá, entidades espirituais de perfil indefinido do início do hinário de mestre Irineu, ou Tucum e Maraximbé, que se evidenciaram bem mais tarde, não impedem que alguém seja cristão; afinal, mínimas diferenças ocorrem até entre as três principais expressões do Cristianismo: Igreja Católica, Igrejas Ortodoxas (Orientais) e Igrejas Protestantes.
Já, louvar entidades de perfil afro-brasileiro, como os presentes na Umbanda e no Candomblé, ou mesmo entidades mais afins a tradições religiosas orientais como o Budismo e do Hinduísmo, isto, sim, se ocorre fere a identidade cristã.
P.S. Como eu devia ter feito desde atrás, quero agradecer a todos, tanto aos organizadores, quanto aos participantes destes encontros, pela oportunidade de poder, uma vez mais, trabalhar ativamente pela doutrina daimista e pela Missão de mestre Raimundo Irineu Serra.|
(continua...)