A Importância das Concentrações na Doutrina Daimista
Pediram-me que discorresse sobre a origem e a importância das concentrações entre as práticas da doutrina daimista. Vou dividir este meu trabalho em três aspectos: 1) a existência de concentrações na doutrina daimista muito antes da filiação de mestre Irineu ao CECP – Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento; 2) o papel das formas de concentração ou meditação silenciosa em todas as escolas de práticas espirituais, ou religiões, conhecidas; 3) a dinâmica neuropsíquica do daime que propicia o autoconhecimento e o desenvolvimento espiritual.
Luiz Carlos C. Teixeira de Freitas
9/29/202521 min read


DESDE O COMEÇO DE TUDO, CONCENTRAÇÕES
De início, é preciso lembrar que, a despeito de suposições de que mestre Irineu tivesse introduzido as concentrações na doutrina por influência do CECP, isto não é verdadeiro e parece ser, uma vez mais, grande dificuldade em aceitar a doutrina daimista como original em suas proposições, não tendo dependido de nada mais do que si mesma (ensinamentos dos hinos e de mestre Irineu) para firmar sua existência e identidade.
Quase no final de seu hinário (e vida em matéria), Mestre Irineu cantou:
Aqui estou dizendo,
aqui estou cantando,
eu digo para todos
e os hinos estão ensinando.
(...)
A Virgem Mãe é soberana,
foi Ela quem me ensinou.
Ela me mandou p’ra cá,
para ser um professor.
Em 1931, quando ainda não havia o canto grupal de hinos (que começaram somente em 1935), mestre Irineu deu início a sua missão.
“A primeira determinação nesse processo foi a instituição dos trabalhos de concentração e cura, primeiros rituais implantados na formação doutrinária de Irineu Serra” (Jairo Carioca)
Como se vê, naqueles princípios havia apenas concentrações (embora sem a regularidade quinzenal de todo dia 15 ou 30, que seria definida bem mais tarde) e, quando necessário, serviços de cura, enquanto a aproximação com o Círculo deve ter ocorrido apenas a partir de 1945 (e mais intensamente após 1961).
Vejamos isso mais de perto, pois é assunto complexo e cheio de nuances.
Ele veio receber de uns tempos pra cá, quando a gente já estava aqui já na Colônia Custódio Freire [o chamado Alto Santo, para onde o Mestre se mudara em 1945. Agora, era o Daniel que trazia pra ele. Um amigo de Daniel era da revista do Círculo Esotérico, aí, repassava para o Daniel que trazia pra ele. (Paulo Serra)
Chama atenção, também, o que dona Percília relata, lembrando que ela foi o braçodireito de mestre Irineu por mais de 30 anos):
“As concentrações do Círculo Esotérico sempre foram muito bem organizadas. Todo mundo se prontificava dentro dos trabalhos em silêncio. Agora o presidente do Círculo Esotérico era quem mais falava. Tinha também outras pessoas lá que davam as instruções. Não eram concentrações fechadas e silenciosas [como as que já existiam], porque tinha aquelas pessoas falando, dando instruções do Círculo Esotérico.” (Percília Ribeiro)
Assim, Mestre Irineu determinou o que existe em todas as formas conhecidas de práticas de desenvolvimento espiritual, quais sejam as meditações silenciosas, e são muitos os indícios históricos de já haver concentrações antes de o Mestre ter se filiado ao CECP.
Como cantaram Antonio Gomes (que faleceu em 1946) e Maria Damião (que faleceu em 1959):
Quem quiser seguir comigo
faça concentração,
implorando ao Pai eterno
e à Virgem da Conceição. (hino 24 do hinário “Amor Divino”)
e
Repousei-me e concentrei,
minha conselheira chegou.
Foi dizendo para mim,
esta verdade para todos ela mostrou. (hino 32 do hinário “O Mensageiro”)
Em 1961 os seguidores de Mestre Irineu começaram a se filiar ao CECP, com o que em 1963 o centro dirigido por Mestre Irineu se filiou à sede central do CECP, em São Paulo.
“O mestre Irineu era filiado ao Círculo Esotérico e à Rosa Cruz. Ele nos aconselhou também a se filiar no Círculo Esotérico. O Padrinho até colocou nós na parede pra a gente se filiar. Ele dava apoio a esta composição aqui dentro, porque dava certo. Ele começou lendo as instruções do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento nos dias das sessões de concentração. Depois passou a ter as sessões Esotéricas que era dia 27 de cada mês, e as Exotéricas na segunda-feira lá na casa do Presidente, na casa de seu Francisco Ferreira ‘Chicão’ “. (João Rodrigues Facundes)
(João Rodrigues Facundes, também conhecido como “Nica”, foi uma figura importante e um dos primeiros seguidores da doutrina de mestre Irineu.)
“Passou a realizar encontros todas as segundas-feiras e todos os dias 27 de cada mês, onde reunia maior número de seguidores em sessões semelhantes às de concentração. Tomávamos daime e nos concentrávamos por uma hora e meia. Quando vinha chegando o afluído, compadre Luiz Mendes lia a oração de Consagração do Aposento e em seguida, executávamos os cânticos dos hinos espirituais e esotéricos. Aquilo mexia com o coração da gente.” (Lourdes Carioca)
Antes de vermos a dinâmica e o importantíssimo papel das concentrações no desenvolvimento espiritual, convém lembrar que o CECP é, em geral, idealizado em demasia. Não que não tenha tido importância, mas não era portador de filosofia com princípios próprios que pudesse transmitir.
Como escrevi em A Rainha da floresta, a missão daimista de evangelização:
Já, quanto ao CÍRCULO ESOTÉRICO, é curioso os estudiosos terem dado tão grande importância a esta instituição, no que supuseram ter sido fonte de influência na estruturação da doutrina daimista, como se o CÍRCULO tivesse sido agremiação portadora de filosofia ou doutrina próprias e não, acima de tudo, um clube de leitura e meditação, digamos assim.
Tal qual tivesse sido demasiadamente difícil avaliar a doutrina daimista como tendo identidade autêntica e original, às vezes parece-me. Por este motivo, um pouco de perspectiva histórica poderá nos ajudar a compreender melhor, também, esta parte do assunto.
Na viragem do século 19 para o 20 a Europa estava em ebulição: aos poucos surgia a Psicologia, a Física moderna engatinhava, a produção literária ou de artes plásticas gestava o Futurismo e as elites intelectuais extasiavam-se com a fotografia e o cinema, assim como eram intensamente impactadas pelo ideário socialista, igualitário, pelo então recente Espiritismo kardecista (1857) e pelas noções religiosas hinduístas, trazidas ao Ocidente pela Sociedade Teosófica, de Helena Blavatsky (1875).
Neste amplo cenário, o empreendedor martinista português Antonio Olívio Rodrigues lançou em São Paulo, em 1907, a revista O Pensamento, com a finalidade expressa de divulgar o que na época se chamava magnetismo, o ocultismo, a Astrologia, as práticas de clarividência (como Tarô e Numerologia), a nascente psicometria e o psiquismo em geral.
Conforme sua narrativa pessoal:
“Certa ocasião, devia ser pelo ano de 1905 (não me recordo agora a data), estava eu à tardinha, contemplando de uma janela o firmamento, como que a perscrutar os abismos do infinito. Surgiu então em meu espírito a ideia vaga de uma sociedade em que todos os amantes da verdade pudessem abrigar-se, sem distinção de casta, raça, cor, religião, sexo, credo político e filosófico, e desde que comungassem dos mesmos ideais”.
Após vaivéns e de ter lançado sua revista, Antonio Olívio Rodrigues fundou em 1909 em São Paulo o CÍRCULO ESOTÉRICO DA COMUNHÃO DO PENSAMENTO.
Como ele propôs:
“Segundo os methodos adaptados pelos grandes centros magnéticos na Europa e nas duas Américas, dentro em breve instituiremos uma ligação entre os diversos centros magnéticos do globo com aquellas pessoas que quizerem estar em comunhão de pensamento em determinadas horas de certos dias. Nesse sentido, já nos dirigimos aos differentes centros e aguardamos para breve a palavra do mez de março, que comunicaremos aos que quizerem praticar essa communhão e ficar assim, magneticamente, em correspondência de pensamento com grande número de pessoas espalhadas por todo o orbe. Para isso, bastará apenas que no dia e hora determinados, concentrando-se o mais possível, encaminhe o pensamento ao serviço do Bem e do Justo, pronunciando as palavras que forem publicadas mensalmente. Para essa comunhão do pensamento não é preciso despender cousa alguma, pois, para evitar mesmo a despeza de correspondência, daremos as palavras em todos os números d’O Pensamento”.
Eficiente marketing editorial, diria alguém hoje em dia.
E já que o CÍRCULO fora fundado em um dia 27 (de junho), este dia foi adotado como a data do mês em que todos os filiados se reuniriam.
Um pouco adiante, na esteira do sucesso da revista, Olívio Rodrigues lançou em 1912 o Almanaque do Pensamento, editado até hoje ininterruptamente, e fundou em 1917 a EDITORA PENSAMENTO, desde o começo traduzindo e distribuindo no Brasil textos humanistas de variados matizes filosóficos ou religiosos (gnósticos, hinduístas, kardecistas, teosofistas e de vertentes do ocultismo então em voga, como os Rosacruzes e os cabalistas não-judeus). Não tendo, portanto, uma filosofia ou doutrina que se pudesse dizer ser própria, senão a de divulgar, por meio de textos editados, o que parecesse ser boa filosofia, ciência ou religião, como é assim até hoje.
Aos poucos o CÍRCULO multiplicou núcleos em todo o Brasil, com o que mestre Irineu se filiou pessoalmente em maio de 1961 em Rio Branco, trinta anos após ter dado início à pregação da doutrina daimista e quando mais de noventa por cento dos hinos da base doutrinária haviam sido recebidos e a ritualística doutrinária estava inteiramente definida.
DOS VEDAS HINDUS A MESTRE IRINEU, A IMPORTÂNCIA DA MEDITAÇÃO
Os textos mais antigos que descrevem práticas de meditação para desenvolvimento espiritual são os Vedas, os textos sagrados do Hinduísmo, que datam de cerca de 1500 AEC. Esses escritos, especialmente os Upanishads, detalham práticas de concentração e autorreflexão que são as bases da meditação, referindo-se a técnicas de foco mental e controle da respiração como caminhos para alcançar a iluminação e a união com o divino.
É importante notar que a meditação não surgiu como uma técnica isolada, mas sim como parte de um complexo sistema filosófico e espiritual. Embora o Budismo, que surgiu mais tarde (por volta do século VI AEC), tenha popularizado a meditação no mundo todo, a prática já existia há séculos nas tradições da Índia.
Conquanto a meditação seja mais associada ao Budismo e ao Hinduísmo, as práticas meditativas e contemplativas, em alguma forma, são encontradas na maioria das religiões do mundo, mesmo que não sejam chamadas explicitamente de “concentração”.
O termo “meditação” no ocidente é uma tradução de diversas práticas orientais, como o dhyana (em sânscrito), que significa contemplar ou meditar. As diferentes religiões usam essas práticas para propósitos semelhantes: alcançar um estado de calma mental, autoconhecimento e união com o divino.
Nas religiões orientais:
Budismo: a meditação é central para a prática budista. O objetivo é alcançar o despertar espiritual (iluminação). Existem diversas técnicas, como a meditação Vipassana (para ter clareza e insight sobre a realidade) e Samatha (para acalmar a mente e focar a atenção).
Hinduísmo: a meditação tem origens muito antigas no Hinduísmo. A meditação com mantras (repetição de sons ou palavras sagradas, como o “Om”) é amplamente utilizada para focar a mente e alcançar um estado de consciência superior.
Taoísmo: também incorpora práticas meditativas para alcançar a pureza da alma e a união com o Divino. A meditação taoísta se diferencia de outras tradições por seu foco na harmonia e na fluidez, em vez de controle ou disciplina rigorosos. O objetivo não é lutar contra a natureza humana, mas sim trabalhar com ela, seguindo o fluxo natural da vida.
Nas religiões ocidentais (abraâmicas):
A meditação pode não ser tão proeminente nessas tradições quanto nas orientais, mas ainda assim é uma parte importante de sua mística e prática espiritual.
Cristianismo: A oração contemplativa ou meditação cristã foca em esvaziar a mente para ouvir a voz de Deus. A prática de Lectio Divina (leitura divina) envolve a leitura lenta e reflexiva da Bíblia para internalizar o texto e aprofundar a comunhão com Deus.
Judaísmo: a tradição mística da Cabala utiliza práticas meditativas, como a repetição dos nomes de Deus, para se conectar com o Divino. O termo hebraico Hitbodedut refere-se a uma prática de meditação e oração pessoal e íntima com Deus; o termo significa “estar sozinho” ou “em isolamento”, refletindo o objetivo da prática de se retirar para um lugar privado para se conectar com Deus.
Islamismo: O Sufismo, a vertente mística do Islã, usa práticas como o zikr (lembrança ou invocação de Deus), que envolve a repetição rítmica de frases e nomes sagrados, muitas vezes seguida de movimentos e respiração. O objetivo é purificar o coração e alcançar a união com Deus.
Como se vê, apesar das diferenças a essência é a mesma: todas essas práticas buscam ir além dos pensamentos e preocupações diárias para se conectar com algo maior, seja a iluminação, o divino ou a verdade interior. Em todas, a meditação é entendida como uma ferramenta fundamental na dinâmica da ascensão espiritual. Embora a “ascensão” possa ter diferentes significados em cada tradição religiosa, a meditação oferece um caminho prático para alcançar os estados de consciência elevados que essa jornada exige.
A sua importância se baseia em algumas funções-chave:
1. Silenciando a mente
O primeiro e mais crucial papel da meditação é acalmar a agitação da mente. O ruído constante dos pensamentos, preocupações e julgamentos atua como uma barreira para a ascensão. A meditação treina a pessoa para observar a mente sem se deixar levar por ela. Ao fazer isso, a mente se torna um receptáculo silencioso, capaz de perceber realidades mais sutis.
2. Aprofundando a conexão interior
A ascensão espiritual é uma jornada “para dentro”. A meditação permite que a pessoa se conecte com seu eu superior, sua alma ou sua essência divina. No silêncio da prática, a intuição e a sabedoria interior, que são geralmente abafadas pela mente racional, se tornam mais acessíveis. A meditação se torna o canal pelo qual a pessoa pode “ouvir” a si mesma em um nível mais profundo.
3. Expansão da consciência
Com a prática regular, a meditação não apenas acalma a mente, mas também a expande. Muitas pessoas relatam experiências de unidade, de se sentirem conectadas a tudo o que existe, ou de ter insights profundos sobre a natureza da realidade. Esses estados, que vão além da percepção normal, são, por si só, momentos de ascensão, que abrem a porta para uma compreensão mais ampla do universo e do seu lugar nele.
4. Limpeza energética e emocional
A ascensão espiritual exige um corpo e uma mente limpos e alinhados. A meditação ajuda a processar e liberar emoções reprimidas, traumas e energias estagnadas. Ao sentarse em silêncio e se observar, a pessoa permite que essas emoções venham à tona e sejam liberadas, preparando o caminho para energias de vibração mais elevada.
Em resumo, a meditação é a base de qualquer prática de ascensão espiritual porque ela não é apenas um relaxamento, mas um treinamento da consciência. Ela oferece a disciplina necessária para transcender a mente limitada e egoica, permitindo que o indivíduo experimente estados mais elevados de ser e se conecte com outras camadas da existência.
A meditação tem vários objetivos, que variam dependendo da tradição ou escola filosófica ou religiosa:
Purificação da mente: A mente é vista como cheia de distrações e pensamentos desnecessários. A meditação ajuda a acalmar essa agitação mental, tornando-a clara e receptiva.
Um caminho sistemático para o autoconhecimento e a transcendência.
Conexão com o eu superior: O objetivo final é perceber que o Atman (o eu individual) é, na sua essência, o mesmo que o Brahman (a realidade última ou o divino). A meditação é a ferramenta para essa união.
Existem inúmeras técnicas e abordagens nas meditações hindus, mas a maioria se enquadra em duas categorias principais:Meditação com forma: O praticante foca em um objeto específico, como um mantra (sílaba ou frase sagrada), a imagem de uma divindade, um yantra (diagrama místico) ou até mesmo a própria respiração. Essa prática é mais comum para iniciantes, pois oferece um ponto de foco para a mente.
Meditação sem forma: Aqui, a prática é mais abstrata. O foco não é em um objeto externo, mas na natureza da própria consciência, no espaço vazio entre os pensamentos ou, por exemplo, na investigação da pergunta “quem sou eu?”. É uma forma mais avançada, que busca a dissolução completa do ego, na mente. Nas tradições cristãs o assunto não é diferente, embora com outras crenças.
Como exemplos, Santo Agostinho, São João da Cruz e Santa Tereza de Ávila.
A principal forma de meditação de S. Agostinho é a jornada interior. Ele defendia que a verdade não é encontrada no mundo exterior, mas na alma de cada pessoa. A sua frase mais famosa resume essa ideia: “não queiras sair, volta para ti mesmo, pois no interior do homem habita a verdade.
Para S. Agostinho, o ato de meditar é um “voltar para si”, afastando-se das distrações do mundo e das aparências, para encontrar Deus e a verdade dentro da própria alma.
Lembrando com isso os ensinamentos da doutrina daimista: “como diz mesmo o próprio hino, temos estudos finos e é preciso compreender. O que ele [mestre Irineu] mais almejava em nós era a gente se conscientizar da gente mesma, se olhar. Era onde ele se prendia mais: o ensinamento maior dele era a gente se olhar, se olhar e se olhar, que através disso chegava o resto. Tudo, tudo, tudo. Que enquanto a gente está procurando Jesus dentro das paróquias, dentro das multidões... ele está realmente em todos esses lugares... mas é muito melhor a gente procurar dentro da gente, que a gente encontra com mais facilidade: a gente se virando para a gente mesmo, vai se encontrar com ele com mais facilidade do que dentro de um templo ou até dentro da mata”. (João Rodrigues Facundes)
Em sua obra Confissões, S. Agostinho descreve a memória como um vasto palácio interior, uma parte muito profunda da alma, onde a verdade, a beleza e até mesmo a presença de Deus podem ser encontradas. Para ele, a meditação é um ato de explorar essa “cidade” da memória, buscando as impressões de Deus que estão ali presentes. Ele meditava sobre suas próprias experiências, pecados e buscas para encontrar as lições divinas.
O objetivo da meditação para S. Agostinho não era apenas encontrar paz ou tranquilidade, mas sim:
Encontrar Deus: A busca por Deus era a motivação central. A meditação era o meio de preparar a alma para um encontro direto com o Criador.
Conhecer a si mesmo: Através do auto-exame, ele buscava entender sua própria natureza, suas fraquezas e sua dependência de Deus.
Alcançar a Verdade: Ao voltar para dentro, ele acreditava ser possível ir além das opiniões superficiais e alcançar uma verdade mais profunda e eterna.
São João da Cruz descreve em seus escritos a meditação como a oração discursiva. Neste estágio, a pessoa usa a razão, a imaginação e a memória para refletir sobre verdades de fé, eventos da vida de Cristo ou passagens da Bíblia.
S. Tereza de Ávila, que viveu no século XVI, ensinava sobre a meditação:
A primeira oração sobrenatural que, a meu ver, senti (chamo de sobrenatural algo que não podemos adquirir com nosso engenho e esforço, por mais que procuremos, embora possamos nos dispor a ele, o que é muito importante) é um ‘recolhimento interior’ que se sente na alma, dando a impressão que ela tem outros sentidos, como aqui tem os exteriores, e de que parece querer afastar-se das agitações exteriores; e assim algumas vezes o leva consigo, pois lhe dá vontade de fechar os olhos e não ouvir, nem ver, nem entender senão aquilo de que se ocupa, que é poder tratar com Deus a sós.
O PAPEL DO DAIME NAS PRÁTICAS MEDITATIVAS DAS CONCENTRAÇÕES
Lembrando que as sessões de concentração são o que predomina na doutrina daimista no correr do tempo, embora os serviços bailados sejam o que chama mais a atenção – em um ano comum há nove serviços bailados regulares (as quatro Noites Santas: Santos Reis, São João, Imaculada Conceição de Maria e Natal; dois serviços de contrição: Sexta Santa e Finados; três serviços por sugestão da irmandade: São José, Aniversário do Mestre, Passagem do Mestre) e cerca de 24 sessões de concentração, uma por quinzena –, para aprofundarmos o conhecimento das alterações psíquicas e neurofisiológicas positivas causadas pela prática da meditação sob ação do daime é preciso saber que a meditação e seus efeitos no cérebro são temas de pesquisa crescente e que os estudos sugerem que a prática regular pode levar a estáveis mudanças neurológicas e na química cerebral.
Alterações neurais e estruturais
Matéria cinzenta: pesquisas mostram que a meditação pode aumentar a massa cinzenta em áreas do cérebro associadas ao aprendizado, à memória, à regulação emocional e à autoconsciência. As regiões mais notáveis são o hipocampo, a amígdala e o córtex pré-frontal, três estruturas cerebrais cruciais que trabalham juntas para processar emoções, memórias e tomar decisões, razão por que a interação entre elas é fundamental para nosso comportamento, aprendizado e saúde mental.
Conectividade neural: a meditação pode fortalecer as conexões entre diferentes partes do cérebro, melhorando a comunicação entre a rede de modo padrão (associada à divagação da mente) e as áreas que controlam o foco e a atenção, o que resulta em maior capacidade de concentração e menos ruminação.
Corpo caloso: o corpo caloso, que conecta os dois hemisférios cerebrais, também pode ter sua espessura alterada com a meditação, facilitando a comunicação entre as duas “metades” do cérebro.
Além disso, a meditação pode ajudar a regular e estabilizar os níveis de neurotransmissores, que são mensageiros químicos no cérebro:
Serotonina: Conhecida por seu papel na regulação do humor e da felicidade, a serotonina pode ter seus níveis elevados com a prática da meditação, o que pode ajudar a reduzir sintomas de depressão e ansiedade.
GABA (Ácido Gama-aminobutírico): O GABA é o principal neurotransmissor inibitório do sistema nervoso central. O aumento de GABA na prática de meditação está associado à redução do estresse e da ansiedade, pois ele ajuda a acalmar a atividade neuronal excessiva.
Dopamina: Este neurotransmissor é associado ao prazer e à motivação. Embora a pesquisa seja menos conclusiva, a meditação pode influenciar os níveis de dopamina de forma que ajuda a reforçar a prática, tornando-a uma atividade gratificante.
Endorfinas: A meditação pode levar à liberação de endorfinas, os analgésicos naturais do corpo, o que pode contribuir para uma sensação de bem-estar e alívio da dor.
A meditação não é apenas uma prática de relaxamento, mas um treinamento cerebral que pode induzir neuroplasticidade, ou seja, a capacidade do cérebro de se reorganizar, formando novas conexões neurais ao longo da vida.
Quando um praticante toma daime para meditar, ele acentua a dinâmica de autopercepção e melhor percepção do entorno (outras camadas da existência), propiciando que a sua consciência absorva muito mais ou mais diferenciada informação sobre si mesmo e outras pessoas.
Isto ocorre porque o daime propicia a expansão prolongada dos campos de consciência:
Recordando Meister Eckhart, místico dominicano medieval do início do século XIII:
“Para chegar ao âmago de Deus, no seu sentido mais amplo, o indivíduo deve chegar ao âmago de si mesmo, no seu sentido mais restrito, pois ninguém pode conhecer Deus sem que tenha, antes, conhecido a si mesmo. Mergulhe nas profundezas da alma, a morada do Altíssimo, até as raízes, até as alturas, pois tudo o que Deus pode fazer está aí concentrado”.
Por isso o hino cantou:
Dai-me conforto e dai-me amor,
Vós queira me guiar
dentro do meu coração,
para sempre eu Vos amar.
Ou, como ensinou S. Teresa de Ávila:
“A questão de nos conhecermos é tão importante que eu gostaria que não houvesse nenhuma negligência, por mais elevadas que estejais no céu [...] E assim volto a dizer que é muito bom, extremamente bom, entrar primeiro no aposento do conhecimento próprio antes de voar aos outros, porque esse é o caminho. Se podemos ir pelo seguro e plano, porque haveremos de querer asas para voar? Devemos, pelo contrário, aprofundar-nos mais no conhecimento de nós mesmas.
E como a expansão de consciência se dá?
Ao tomar daime, o praticante está tomando duas classes de substâncias psicoativas: a DMT, contida nas folhas, e os IMAO, contidos no cipó.
A dimetiltriptamina (DMT) é uma substância natural, encontrada em muitas plantas e, em pequenas quantidades, no corpo humano. Seu efeito no psiquismo é notável por ser extremamente rápido e intenso. A experiência com DMT é frequentemente descrita como uma das mais potentes e profundas alterações da consciência.
Quando inalada ou injetada, a DMT produz uma “viagem” psicodélica (do grego psyché, “mente”, “alma”, e do grego délos, “revelar”, “mostrar”; literalmente, “o que manifesta a mente” ou “o que revela a alma”) de curta duração, geralmente de 5 a 30 minutos. Os efeitos podem incluir:
Alteração profunda da percepção: distorção ou dissolução da realidade, com o surgimento de visuais e padrões geométricos complexos.
Experiências fora do corpo: sensação de desprendimento do próprio corpo físico e da identidade pessoal (dissolução do ego).
Encontros com entidades: muitas pessoas relatam a sensação de interagir com “seres”, “entidades” ou “arquétipos” de outras dimensões, que podem parecer benevolentes ou desafiadores.
Sensação de onisciência: a percepção de que a pessoa está acessando um vasto conhecimento universal ou “verdades” sobre a existência.
Intensas emoções: as emoções podem variar de êxtase, alegria e paz a medo, ansiedade e confusão.
Quando ingerida oralmente, geralmente combinada com um inibidor da MAO (como no daime), a experiência se torna muito mais longa e complexa, durando várias horas. Nesse caso, a DMT pode levar a profundas introspecções, purificação emocional e insights espirituais.
O DMT age principalmente no cérebro ativando os receptores de serotonina.
Estudos de neuroimagem mostram que a DMT aumenta a comunicação entre diferentes áreas do cérebro, que normalmente não interagem. Isso pode ser a base para as percepções sinestésicas e as visões complexas.
No daime, o praticante também ingere princípios inibidores de MAO, presentes no cipó. A MAO (monoamina oxidase) é uma enzima que tem como principal função degradar neurotransmissores chamados monoaminas. Os mais importantes são:
Serotonina: ligada ao humor, bem-estar e sono.
Dopamina: associada ao prazer, motivação e movimento.
Norepinefrina (Noradrenalina): relacionada ao estado de alerta e energia.
Os inibidores da MAO fazem exatamente o que o nome sugere: eles bloqueiam a ação dessa enzima. Ao impedir que a MAO quebre esses neurotransmissores, os IMAOs elevam suas concentrações no cérebro. O aumento nos níveis desses neurotransmissores tem um impacto direto e profundo no estado mental e emocional de uma pessoa:
Efeito antidepressivo: aumentam os níveis de serotonina e norepinefrina, o que pode aliviar os sintomas da depressão e da ansiedade.
Influência na motivação e energia: o aumento da dopamina pode melhorar o ânimo, a motivação e a energia.
Modulação da consciência: no contexto das substâncias psicodélicas, o papel do IMAO é permitir que a dimetiltriptamina (DMT), presente em plantas, seja ativa quando ingerida. Sem o inibidor, seja a harmina ou a harmalina, a MAO do nosso sistema digestivo a degradaria antes que ela pudesse causar qualquer efeito. Assim, os IMAOs são essenciais para rituais como os do daime, permitindo que a DMT atinja o cérebro e cause seus efeitos profundos na expansão da percepção e da consciência.
Este é o papel mais conhecido. A harmina e a harmalina são os componentes-chave que tornam o daime psicoativo. A DMT, que é a substância expansora de consciência presente no daime, seria completamente destruída pelo nosso sistema digestivo se não fosse a presença dos IMAOs. Ao inibir a MAO, a harmina e a harmalina permitem que a DMT chegue ao cérebro e cause seus efeitos intensos na percepção e na consciência.
Em resumo, a harmina e a harmalina não são os principais responsáveis pela experiência visionária, mas são o que propicia que substâncias como a DMT possam agir. Sem elas, a viagem psicodélica com daime simplesmente não ocorreria e, por isso, a tradição daimista denomina a folha de “luz” (por causa da DMT) e o cipó de “força” (por causa dos IMAO).
A muitos pode parecer desnecessário, inadequado ou até inconveniente o uso deliberado de fitoagentes químicos para obter um estado expandido de consciência, como se não houvesse mérito nisso ou tal ganho de consciência devesse obrigatoriamente derivar de prolongado esforço pessoal. Todavia, tal conjectura é em geral fruto de desinformação, por suporse erroneamente que tais conquistas não são sustentáveis e, em verdade, tornam a pessoa dependente do uso habitual da bebida para poder prosseguir em seu aperfeiçoamento íntimo e espiritual.
Além disso, não se recorda que, se a motivação profunda é de fato obter a transformação ético-moral, o verdadeiro mérito reside no que que é escolhido em estado expandido de consciência ou após ele, e não no feito, em si, de alcançar este grau de expansão, seja por um ou outro meio, tanto faz, que é só um útil recurso.
Lembrei em A Rainha da floresta:
“Deve-se tranquilizar corações ao informar que o daime, ao contrário de outras substâncias psicoativas, e conforme com pesquisas psicobiofisiológicas levadas a cabo nos últimos vinte anos por pesquisadores clínicos brasileiros, europeus e norte-americanos, apresenta tolerância reversa, isto é, requer-se cada vez menos daime para obter equivalente efeito expansor de consciência, com isso eliminando o risco de dependência.
Por outro lado, não se deve olvidar que a utilização de daime, ao menos em centros fiéis à doutrina daimista, se dá em um contexto no qual os princípios doutrinários expressados – nem que apenas nos ‘hinos novos’, os hinos de mestre Irineu cantados ao final de cada concentração, com todos em pé, para reafirmar o ego após a expansão da consciência durante o longo ensimesmamento – oferecem precisa e preciosa baliza para a reforma íntima avançar e se aprofundar, estando o praticante sob efeito do daime ou já não, na medida em que avalia o mundo e a si à luz de tais premissas e conhecimentos no decorrer dos rituais e após eles – por isso são quinzenais, as concentrações –, podendo dar continuidade ao autodesenvolvimento em outros momentos além dos vividos no ritual com daime.
Isso, então, confere importante sustentabilidade ao trabalho a ser feito, se houver escolha pessoal neste sentido, para aprimoramento pessoal contínuo e duradouro”.
Curioso, este aspecto dos “hinos novos”, também chamados “o cruzeirinho”...
Desde o início de tudo e até 1968 ou 1969, as concentrações eram encerradas somente com as orações habituais (Pai-Nosso, Ave Maria e Salve Rainha) e as alocuções de encerramento. Após receber o primeiro dos “hinos novos”, “Dou viva a Deus nas alturas” mestre Irineu determinou que os “hinos novos” seriam cantados a capella, com todos em pé, antes das orações e do encerramento.
A partir daí, os 14 hinos recebidos por mestre Irineu (sendo um sem letra e, o último, com discordâncias sobre se deve ser cantado ou não nas concentrações e com ou sem instrumentos e com ou sem baile nos serviços bailados) passaram a ser uma apresentação resumida dos ensinamentos da doutrina.
Com isso, de 15 em 15 dias os praticantes, além de se autoexaminarem em estado expandido de consciência (o que induz percepções e reflexões mais profundas), refletem sobre os princípios doutrinários estabelecidos por mestre Irineu.

