A Doutrina Daimista, que é Cristã
Perguntaram-me se a doutrina que Mestre Irineu cantou e pregou é “a doutrina de Jesus Cristo” ou “a doutrina do daime”. Embora à primeira vista a questão não pareça ter sentido algum, ela esconde uma enorme dificuldade em adorar nosso Senhor Jesus Cristo como Deus feito carne e uma renitente interpretação animista da doutrina daimista, e por isso cabe reflexão para aprendizado.
9/4/202518 min read


A doutrina daimista, que é cristã
I - Como se canta na doutrina ensinada por Mestre Irineu
Em primeiro lugar, vejamos alguns hinos onde a identidade cristã da doutrina se expõe de modo cristalino nos cinco hinários da base doutrinária (MI, Mestre Irineu; GG, Germano Guilherme; JP, João Pereira; MD, Maria Damião; AG, Antonio Gomes).
“A minha Mãe que me mandou
trazer santa doutrina,
meus irmãos, todos que vêm,
todos trazem este ensino”. (MI, 38)
“Jesus Cristo me mandou
para mim vir ensinar:
replante a santa doutrina
e Deus te dá um bom lugar”. (MI, 98)
“Jesus Cristo está na Terra,
foi Deus do céu foi quem mandou
para Ele vir nos ensinar
a doutrina do Salvador”. (GG, 08)
“Esta divina doutrina
é de Jesus Cristo Redentor.
E é da nossa Virgem Mãe,
foi Ela quem nos mandou”. (JP, 38)
“Pois se curvem à Doutrina,
à doutrina de Jesus Salvador”. (MD, 8)
“É de grandes a pequenos,
é para todos dar valor,
que nós estamos na doutrina
do nosso Pai criador”. (MD, 10)
“Eu vim para ensinar,
o nosso Pai foi quem mandou,
eu ensinar aos meus irmãos
a doutrina do Salvador”. (AG, 03)
“Todos devem aprender,
e bem amar no coração,
a doutrina de Jesus Cristo,
que é o dono desta missão”. (AG, 09)
“Vamos todos, meus irmãos,
aprender com alegria
a doutrina do Redentor,
Filho da Virgem Maria”. (AG, 20)
II - A doutrina daimista e os quatro Evangelhos
Analisemos também o emprego do termo “replantar”, atribuído em hinos de Mestre Irineu tanto a nosso Senhor Jesus Cristo quanto a Mestre Irineu:
“Jesus Cristo veio ao mundo
replantar santa doutrina,
os descrentes assassinaram
e ainda hoje é quem me ensina”. (MI, 59)
“Jesus Cristo me mandou
para mim vir ensinar:
replante a santa doutrina
e Deus te dá um bom lugar”. (MI, 98)
Por que o hino canta que “Jesus Cristo veio ao mundo replantar santa doutrina”? Para avançar bem, daqui em diante teremos de estudar um pouco dos Evangelhos cristãos, mesmo que com este tipo de tratamento do assunto eu corra o risco de ser taxado de “evangélico demais ao falar da doutrina daimista”, como ouvi mais de uma vez...
Isto está na Bíblia, no Novo Testamento, onde se afirma que Jesus Cristo replantou uma santa doutrina. A passagem completa, que contextualiza a fala de Jesus, está no Evangelho de João: “Então Jesus lhes respondeu: 'O meu ensino não vem de mim, mas Daquele que me enviou. Se alguém quiser fazer a vontade de Deus, ele saberá se este ensinamento vem de Deus ou se eu falo por mim mesmo”. (João, 7: 16)
Nessa ocasião, Jesus estava no Templo de Jerusalém, durante a Festa dos Tabernáculos. As pessoas se maravilhavam com seus ensinamentos, mas questionavam de onde ele havia tirado tanto conhecimento, já que não tinha estudado com os mestres da época. Jesus responde, deixando claro que sua autoridade não vinha de si mesmo, mas de Deus, o Pai, que o havia enviado.
Mas o que quer dizer “Deus, quando veio ao mundo, para curar e salvar, ensinar a santa doutrina àqueles que procurar”?
“Deus, quando veio ao mundo
para curar e salvar,
ensinar a santa doutrina
àqueles que procurar”. (JP, 10)
A afirmação de que Jesus Cristo é Deus feito carne e que veio ao mundo também é encontrada de forma evidente no Evangelho de João (que não deve ser confundido com João Batista).
O trecho mais direto e conhecido é o primeiro capítulo deste Evangelho, que serve como um prólogo: “No início era o Verbo, e o Verbo estava voltado para Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava, no início, voltado para Deus. Tudo foi feito por meio dele; e sem ele nada se fez do que foi feito. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens; e a luz brilha nas trevas e as trevas não a compreenderam (...) E o Verbo se fez carne e habitou entre nós e nós vimos a sua glória; glória essa que, Filho único cheio de graça e de verdade, ele tem da parte do Pai”. (João 1: 1-5, 14)
Nessa passagem, o termo “Verbo” é referente a Jesus Cristo. O evangelista afirma que o Verbo, que é eterno (“no início era o Verbo”), “estava com Deus” e “era Deus”.
Repare: mesmo sendo Deus, era diferente de Deus (“o Verbo era Deus. Ele estava, no início, voltado para Deus”), em função da existência das Três Pessoas de Deus no mistério da Santíssima Trindade: Deus Pai, o Verbo (ou Filho) e o Espírito Santo.
Em seguida, no versículo 14, ele faz a conexão explícita: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós”, indicando a encarnação de Jesus.
Essa doutrina, conhecida como Encarnação, é fundamental para a fé cristã e é um dos temas principais do Evangelho de João. Ela destaca a crença de que Jesus Cristo não é apenas um profeta ou um mestre, mas é o próprio Deus que se tornou humano para habitar entre as pessoas.
Há outros trechos que reforçam esta noção. Embora João 1: 14 seja a declaração mais direta, a mesma ideia é encontrada em outras partes do Novo Testamento, em epístolas de São Paulo:
•Filipenses 2: 6-7: “Ele [Jesus Cristo], que é de condição divina, não considerou como presa a agarrar o ser igual a Deus. Mas despojou-se, tomando a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens e, por seu aspecto, reconhecido como homem; ele se rebaixou, tornando-se obediente até à morte, e morte numa cruz. Foi por isso que Deus o exaltou soberanamente e lhe conferiu o Nome que está acima de todo nome, a fim de que ao nome de Jesus todo joelho se dobre, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus pai”.
“A minha Mãe que me ensinou,
com o nome de Jesus,
é quem me mostra esta verdade,
é quem me dá a santa luz”. (MI, 83)
•Colossenses 2: 9: “Pois neste [em Jesus Cristo] habita corporalmente toda a plenitude da divindade”.
•1 Timóteo 3: 16: “Saberás assim como proceder na casa de Deus, que é a igreja do Deus vivo, coluna e sustentáculo da verdade. Grande é, com certeza, o mistério da piedade. Ele foi manifestado na carne, justificado pelo Espírito, contemplado pelos anjos, proclamado pelos pagãos, acreditado no mundo, exaltado na glória”.
Ou, como Santo Agostinho fez lembrar em um de seus sermões de Natal, sobre a Pessoa de Jesus Cristo: “Aquele que, nascido do Pai, criou todos os séculos, consagrou este dia, nascendo de uma mãe, nesta terra. Naquele nascimento não pôde ter mãe; neste, não buscou pai humano. Em poucas palavras: Cristo nasceu de um pai e uma mãe e, ao mesmo tempo, sem pai e sem mãe. Enquanto Deus, nasceu do Pai; enquanto homem, de mãe. Enquanto Deus, sem mãe, enquanto homem, sem pai [...] Aquele que regia o universo acha-se, agora, reclinado em um presépio. Não fala e é a Palavra! Aquele que os céus não podem conter, o seio de uma mulher encerrou. Ela governava o nosso Pai. Trazia Aquele por quem existimos. Ela alimentava, com seu leite, o nosso Pão. Ó fraqueza manifesta! Ó humildade maravilhosa, onde toda a divindade permanece oculta! Com poder, governava a Mãe Aquele que, como recém-nascido, a ela se submetia. E ele alimentava, com a Verdade, aquela de cujos seios sugava. Digne-se completar em nós, os seus dons, Aquele a quem não repugnou assumir os nossos começos. Faça-nos também filhos de Deus, Aquele que por nós quis tornar-se filho do homem”.
Ainda sobre a doutrina, Mestre Irineu cantou o papel de são João, o Batista, que já a pregava antes de Jesus Cristo vir a ele:
“Pregando a santa doutrina
o amor ele empregou,
atrás dele veio Jesus
e toda a verdade afirmou”. (MI, 66)
A Bíblia apresenta João Batista como uma figura de extrema importância, um profeta escolhido por Deus para preparar o caminho para Jesus. Sua história é contada nos quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João) e ele é descrito como o elo entre o Antigo e o Novo Testamento.
O Evangelho de Lucas oferece um relato mais detalhado do nascimento de João. Ele era filho do sacerdote judeu Zacarias e de Isabel, prima de Maria, mãe de Jesus. O casal era idoso e sem filhos, e um anjo apareceu a Zacarias no templo para anunciar que Isabel daria à luz um filho que seria “repleto do Espírito Santo desde o seio de sua mãe (Lucas, 1: 15)”.
O anjo também disse a Zacarias que o menino iria reconduzir “muitos dos filhos de Israel ao Senhor seu Deus” (Lucas, 1: 16) e que “caminharia “à sua frente, sob os olhos de Deus, com o espírito e poder de Elias” (Lucas, 1: 17). Essa profecia o conecta diretamente ao profeta do Antigo Testamento, que, segundo a tradição, voltaria antes da chegada do Messias.
Ele pregava que o Reino de Deus estava próximo e que as pessoas deveriam se arrepender de seus pecados e ser batizadas no rio Jordão como um sinal de mudança de vida. Seu batismo não era para perdoar pecados, mas para simbolizar a purificação e o preparo do coração para a vinda de Jesus Cristo. Por causa disso, ele ficou conhecido como “o Batista”.
O momento mais significativo do ministério de João Batista foi o seu encontro com Jesus. No Evangelho de João, ele reconhece Jesus publicamente: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (João, 1: 29). Essa frase identifica Jesus Cristo como o Messias prometido, que seria sacrificado para a redenção da humanidade.
Relata o Evangelho de Mateus (3: 1-3, 11, 13-15): “Naqueles dias, apresenta-se João, o Batista, proclamando no deserto da Judeia: ‘Convertei-vos: o Reinado dos céus aproximou-se’! Dele é que falara o profeta Isaías ao dizer: ‘Uma voz clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas’. (Dizia-lhes:) eu vos batizo na água, em vista da conversão; mas aquele que vem depois de mim é mais forte do que eu; eu não sou digno de tirar-lhe as sandálias; ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo (...) Então chega Jesus, vindo da Galileia ao Jordão, junto a João, para fazer-se batizar por ele. João quis opor-se a isto: ‘Eu é que preciso ser batizado por ti, dizia, e és tu que vens a mim?’ Mas Jesus replicou-lhe: ‘Deixa, agora é assim que nos convém cumprir toda a justiça’. Então ele o deixa fazer”.
Aliás, é por esta mesma passagem (reafirmada nos quatro Evangelhos) que nunca consegui entender uma específica estrofe do hino de Mestre Irineu em que ele se refere a João Batista e a Jesus Cristo:
“Toda a verdade afirmou,
gravou no coração.
Ambos foram batizados
no rio de Jordão” (MI, 66).
Pois, ao menos segundo a Bíblia, João Batista não foi batizado; ele era “o batizador”, inclusive de Jesus Cristo. Assim, o “ambos foram batizados” não está nos Evangelhos.
O Evangelho de Mateus prossegue (3: 16-17): “Logo que foi batizado, Jesus saiu da água. Eis que os céus se abriram, e ele viu o Espírito Santo descer como uma pomba e pairar sobre ele, e eis que uma voz vinda dos céus dizia: ‘Este é meu Filho bem-amado, aquele que me aprouve escolher’”.
III - A doutrina cristã daimista
Então, para discutir melhor o termo “daimista” (num momento paradoxal do mundo no qual evangélicos, principalmente os neopentecostais, raramente mencionam os quatro Evangelhos cristãos, preferindo citar Livros do Antigo Testamento e Epístolas de S. Paulo), quero reproduzir alguns trechos de meu livro O Mensageiro – o replantio daimista da doutrina cristã, de 2004: “Voltando ao daime, seu uso associado a algum tipo de ritual é imemorial na Amazônia Ocidental (parcelas do Amazonas, Acre, Amapá, Rondônia e Roraima, no Brasil, e parte da Colômbia, Bolívia, Peru, Equador e Guianas).
Embora lendas urbanas valorizem o pretenso fato de sábios Inca (amautas, em idioma quéchua) terem sido usuários da bebida por séculos a fio, sabe-se que o Estado Imperial Inca não teve duração superior a cem anos nas regiões andinas, a partir do sul do Peru, entre os Séculos XV e XVI, e que só após um contato mais estreito com os povos residentes no hoje Equador, já no final do Tahuantinsuyo (o nome daquele Estado, em quéchua), é que a etnia Inca, residente em Cusco, pôde conhecer a bebida, já que abaixo daquela região tanto a rainha quanto o jagube não brotam naturalmente.
O que os primeiros testemunhos espanhóis atestam a partir do Século XVI sobre a bebida ayahuasca se dá logo após a anexação das etnias do hoje Equador ao Estado Imperial Inca e, assim, supõe-se erroneamente que tal uso sempre se deu em toda a vasta região controlada pelos Inca — complexa cultura, aliás, ingenuamente mitificada no imaginário ocidental contemporâneo.
É fato, contudo, que a bebida desde há muito é utilizada popularmente na Amazônia Ocidental em rituais de pajelança indígena ou cabocla, razão pela qual mestre Irineu, o pregador da doutrina daimista, já a conheceu pronta. O que ele fez a partir daí, pela vontade de Deus e por obra da graça, é o mais importante de sua passagem pelo mundo e deste relato.
(...) – Até meados da década de 1970 nunca houve algo que pudesse ser chamado de ‘religião do santo daime’, como a partir de então passou a ser alardeado na mídia nacional e mundial, no afã de propalar o que passou a parecer o ‘surgimento de uma nova religião na Amazônia — a Doutrina do Santo Daime’.
Na verdade, a doutrina daimista também nem seita é, se seita implica ‘doutrina ou sistema que se afasta da crença ou opinião geral’ ou ‘sociedade cujos membros se agregam voluntariamente e que se mantém à parte do mundo’.
No correr deste relato veremos o que originou tal alarde sobre uma suposta nova religião, ou nova seita, dentro da inconsistência filosófico-teológica e da lógica de mercado predominantes em boa parte das produções culturais da assim chamada cultura Nova-era, mas desde já devo esclarecer que há a doutrina cristã explicitada nos Evangelhos e existiram, como forma ativa de busca da salvação, os rituais daimistas de evangelização praticados e pregados por mestre Raimundo Irineu Serra – o que não é, e nunca foi, uma nova religião.
É exclusivamente dentro desta baliza fundamental de entendimento, então, que utilizo a expressão doutrina daimista em todo este relato.
(...) Alguns dos daimistas mais antigos recordam mestre Irineu preferindo dizer-se uasqueiro, ou tomador de uasca (ayahuasca), a daimista, sinalizando a sua própria percepção de não existir daimismo: o daime é recurso sacramental propiciador da aproximação a Deus, em Deus, e a identidade e a estrutura doutrinária daimista originária foram exclusivamente cristãs.
Para ilustrar esta afirmação, reproduzo um diálogo mantido por mim com João Rodrigues Facundes, o Nica, Secretário da primeira diretoria do CICLU —CENTRO DE ILUMINAÇÃO CRISTÃ LUZ UNIVERSAL, o único centro de serviços espirituais que foi formalizado por mestre Irineu (em 1971, alguns meses antes de sua própria passagem):
— ‘O senhor me recordou um fato, ‘seu’ Nica: no ano passado [1994] eu conversava com dona Peregrina [a viúva do Mestre] e em certo momento eu falei em ele ser daimista... Aí ela me atalhou: ‘eu preferia que o senhor usasse o termo que o Mestre usava. Ele dizia que era uasqueiro’...
— Uasqueiro!
— Isso... Ele dizia assim, ‘seu’ Nica?
— Dizia. E com muita ênfase!
— Mesmo depois de ter dado o nome de ‘daime’ à bebida?
— Sim, de daime...
— Uasqueiro?
— Uasqueiro, é ele. Ele não fugia, assim, da raiz, né?
— Isso me chamou a atenção, ‘seu’ Nica... Esse comentário da dona Peregrina me chamou muito a atenção!
— Eu, sinceramente, eu posso frisar isso aí como memória, para ficar em memória. São palavras dele, vamos dizer assim, são palavras dele: nós somos, éramos e continuamos sendo uasqueiros’.
(...) Tocando em um aspecto assaz delicado, então, em nenhum hino da base doutrinária ocorre a expressão ‘santo daime’ e nem mesmo ‘daime’, em referência à bebida utilizada nos rituais: no máximo, há o rogativo ‘dai-me força’, ‘dai-me amor’, ‘dai-me o socorro’, ‘dai-me o Vosso conforto’ ou ‘dai-me o perdão’.
Por que este ‘santo’, antes de daime, a partir de certa época?
Isto me intrigou por anos até eu compreender que, com a expansão desnorteada dos centros de culto que reafirmavam a suposta religião do santo daime, recrudescera a tendência idolátrica a tentar sacralizar tudo que dissesse respeito à bebida.
Afinal, apenas após o hino 130 do primeiro hinário de Sebastião Mota de Melo (já perto de seu final e muitos anos depois da passagem de mestre Irineu), e principalmente nos hinários de seus seguidores, é que a expressão santo daime surgiu nos hinos e passou a ser crescentemente reforçada.
Em contrapartida, não há uma menção sequer a daime nos 317 hinos da base doutrinária —que dizer a santo daime! , todos os daimistas mais velhos invariavelmente mencionam apenas daime e há mesmo aqueles, entre estes, que até se referem à bebida com o diminutivo afetuoso: tomei um daimezinho.
(Recorde também que mestre Irineu preferia se dizer uasqueiro e chamava a folha de mescla, e não de rainha.)
Com o passar dos anos, muitos anos, em estudo discreto e solitário, pude me debruçar sobre as causas de tal sutil alteração e perceber que, embora o daime mereça a reverência que deve ser conferido a um recurso sacramental e que tenha eficácia comprovada como agente de cura em diversos aspectos do organismo, não se costuma preservar o tênue limite que mantenha a atitude respeitosa, mas impeça a devoção excessiva à bebida em si, para evitar o surgimento da potencial idolatria residente em conceitos como o escrito por Alex Polari: ‘A luz, o princípio feminino da folha, quando se casa com a força, o princípio masculino do cipó, gera a miração’.
Utilizo a expressão ‘recurso sacramental’ para desprender o relato da noção de que o daime seja, em si, um ‘sacramento’, como a ele se referem apenas os daimistas mais recentes, dentro da superficialidade conceitual de certa cultura Nova-era. Sacramento é ‘o ato religioso que tem por objetivo a santificação daquele ou daquilo que é objeto desse ato’ e, não, o recurso de que se lança mão para possibilitar o ritual. Como exemplo, isto se dá na Igreja Católica, cujo sacramento da Eucaristia ocorre pelo oferecimento ritual, aos fiéis, da hóstia e do vinho, os quais, em si, não são ‘sacramentos’, dando-se o mesmo com o Batismo, a Crisma, a Confissão, a Extrema-unção, o Ordenamento e o Matrimônio. Desta forma, e mesmo assim só por livre associação, pode-se falar que ‘tomar daime em um ritual é um sacramento’, com vistas a sacralizar quem participa do ritual dentro do qual ele é tomado – razão pela qual, então, adoto a expressão ‘recurso sacramental’.
Como metáfora dos efeitos do cipó e da folha no eu integrado alma-mente-corpo e, por isso, maior facilidade de abertura para a espiritualidade, a afirmação relativa a luz e força tem algum cabimento; definições assim, porém, em cenários de pouca maturidade espiritual ou escasso apuro teológico, levam com facilidade à adoração da bebida, da folha, do cipó, da água, do fogo ou, em casos mais extremos, até mesmo da panela onde se cozinhou o daime ou do pedaço de pau com que ele foi mexido, além de à suposição de sempre ser possível a miração, o que não é verdade. Melhor seria dizer: o daime gera condições propícias para, com ou sem a intervenção da graça, ocorrer o insight ou a revelação (intuitiva, auditiva e ou visual) na miração.
Sabe-se que pessoas experientes em meditação costumam apresentar no seu sistema nervoso central níveis do neurotransmissor serotonina habitualmente mais elevados do que os de quem não tem o hábito de meditar, como fruto exclusivo de meticuloso e paciente processo de treino:
(...) Sabe-se também que a expansão de consciência pode ser tecnicamente induzida por exercícios de respiração sincopada (hiperventilação ou respiração holotrópica, como veio a ser chamada pelo psiquiatra transpessoalista Stanislav Grof).
Sabe-se, por derradeiro, haver pessoas com capacidade mediúnica tão bem desenvolvida que não necessitam exercícios especiais nem princípios químicos psicoativos para mirar e conhecer melhor a si mesmos ou à espiritualidade.
Nunca esquecerei o quanto aprendi ao ver dona Antônia, a esposa de mestre Antônio Geraldo da Silva, trabalhando entre suas irmãs na igreja da Barquinha, sem haver tomado daime em momento algum. Ao fim do ritual, aproximei-me de sua filha Sandra e perguntei:
‘Sua mãe não tomou daime? Não, respondeu ela, mamãe já quase não toma mais... E por que?, indaguei. Ela mira sem tomar. Já se desenvolveu bastante...’.
O daime é um propiciador privilegiado de processos de percepção da espiritualidade e de integração psicoespiritual, na medida em que, por seu ativo efeito sobre o cérebro e a mente, potencializa em curto espaço de tempo possibilidades mentais costumeiramente não disponíveis em estados comuns de consciência (...), abrindo nosso coração (e expandindo nossa consciência) para a forma de realidade que sempre esteve em nós e à nossa volta, e facilitando o processo de nos dispormos a ver brotar no coração o influxo do amor de Deus e a verdade de seu Filho eterno, em Jesus Cristo, pelo Espírito Santo (no caso de uma missão cristã).
(...) Além do daime, porém, é vital haver um projeto com um claro norte vislumbrado, que empreste sentido a cada etapa vivida no decorrer da busca de Deus em si – e esse é o inestimável papel da doutrina.
Recorda uma antiga daimista: ‘o primeiro daime com esse nome, que tomei, foi no Alto Santo. Antes eu já tomava esta bebida, só que a gente chamava de ‘cipó’, em Feijó. A gente fazia nas casas e tomava nas casas mesmo. Falávamos assim, ‘o cipó está dando nele’, quando alguém passava mal. A bebida é uma coisa só, mas dentro da doutrina existe mais respeito. Notei a diferença entre o daime e o cipó, pois o daime tem uma finalidade, ele explica tudo para mim. O cipó é o mesmo daime, mas incorreto é como eles usam. Precisa doutrinar’.
Como canta um hino, ‘Vós sois baliza e sois baliza’ (GG, 42).
Relata outro daimista: ‘Eu já tinha experimentado ácido, chá de cogumelo. E tinha a maconha também [...] Mas quando conheci o Daime eu logo vi que era diferente, muito diferente daquelas substâncias que eu já tinha usado. Não que eu desprezasse aquele passado. Não, eu acho que já era uma busca, uma procura por algo superior, de um sentido mais profundo sobre a mente, a vida, o universo [...] Mas tinha muita gente que não sabia usar. Quanta gente que eu vi, amigos meus, se perderem, ficarem sem rumo na vida até hoje [...] O Daime era muito mais do que eu procurava. Era o que eu procurava e o que eu nem mais esperava encontrar... O próprio encontro com Deus, o sentido de tudo [...] O Daime tem a doutrina. Porque a gente usava todas aquelas substâncias de uma forma desorientada e no Daime a gente tem a doutrina que nos fornece uma orientação, um rumo certo’.
Caso esta sutil diferença não seja percebida —o daime em si versus a doutrina, sob o efeito do daime—, o poder do céu pode ser identificado na bebida e, por meio desta, em quem faz ou dá o daime para quem o toma, gerando condições de culto à personalidade e até mesmo de manipulação do coletivo, como inúmeras vezes vi ocorrer, ao ser obscurecido o fato de que o verdadeiramente básico, donde a importância soberana da doutrina, é amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, optando por se deixar guiar pelas virtudes e buscando se conhecer e se avaliar sem cessar, na tentativa de integrar memórias, aplanar o coração, eliminar falhas pessoais e rogar pela intercessão da graça de Deus, o que pode ser vigorosamente ajudado pelos rituais da doutrina daimista e, obviamente, pelo daime.
(...) Não é o daime que nos transforma e, sim, o Espírito Santo de Deus, e não é o daime que ensina como isso se dá, mas a doutrina:
"Que ele veio para ensinar,
a todos os seus irmãos,
o que indica neste livro
que ele entrega em nossas mãos" (AG, 31).
Tanto que, sem a doutrina—desde o zelo com o feitio e com os rituais de culto até os princípios de crença e ritualísticos adotados e as formas escolhidas de comportamento –, o daime não é propriamente daime, ‘é só cipó’, segundo testemunhos. O principal é a conversão do coração, como a Escritura é farta em exortações—e isso não se dá só com o fato de tomar daime, mesmo habitual.
O reino de Deus pode ser nesta vida, se houver o contato aprofundado consigo mesmo e o convívio amoroso com os irmãos.
Para isso, graças a Deus, o daime nos torna mais porosos aos efeitos do poder do céu em nossa alma, sob o qual a arquitetura ritual, os princípios teológicos e ritualísticos da doutrina e a obediência às virtudes, reafirmada nos hinos e praticada no dia-a-dia, nos ajudam a superar as cisões e contradições que, em nós mesmos, sufocam o que temos de melhor para a salvação: o amor.
Amor a si, aos irmãos e a Deus.
Afinal, a doutrina é de nosso Senhor, Jesus Cristo, e não, ‘do daime’:
‘Vamos todos, meus irmãos,
aprender com alegria
a doutrina do Redentor,
Filho da Virgem Maria’ (AG, 20).
Quando mestre Irineu cantou ‘essa luz é da floresta, que ninguém não conhecia’ (MI, 65), seguramente não estava se referindo à bebida, conhecida havia séculos ou milênios na Amazônia Ocidental, onde ele a conheceu, mas à luz da mensagem de Jesus Cristo, até então não pregada sob efeito do daime. Em mestre Irineu, e em virtude de hierofanias acreanas, o hino cantou: ‘Quem veio me entregar, foi a sempre Virgem Maria. Quando ela me entregou, eu gravei no coração, para replantar santa doutrina e ensinar aos meus irmãos’ (MI, 65).
O que ele ‘gravou no coração’ não foi a bebida, mas o ensinamento.
(...) Então, quando se colhe depoimentos de daimistas com tal tipo de concepção animista—o daime é tudo, o daime fez, o daime ‘disse’ para mim, o daime é o próprio Mestre ou, até mesmo, o daime não é apenas uma bebida, ele é uma ‘entidade’—, estamos apenas à frente do corriqueiro fato humano de atribuição de poderes ao facilitador da reintegração de si a Deus, por efeito da graça, seja uma pessoa ou algo material, pois é assim que o ser humano costuma perceber a realidade—razão pela qual se deve, com firmeza e alegre humildade, enquanto se trabalha por superar o concreto e também o simbólico no caminho a Deus, manter o coração focalizado na doutrina e seus santos ensinamentos.
Eis o maravilhoso: a doutrina daimista amacia e nivela quem nela se trabalha, sob o efeito da bebida ‘que tem poder inacreditável’ e por ação da graça do Deus vivo que permitimos atuar em nós ao nos voltarmos a Ele em nós mesmos.”
P.S. Dada a existência de diferentes versões traduzidas da Bíblia, com variação de expressões, informo que todas as citações deste estudo foram extraídas da 2a edição brasileira da Bíblia TEB (Tradution Œcuménique de la Bible), editada em 1995 pela Edições Loyola—que, no que se refere ao Antigo Testamento, tem por base os originais hebraico e aramaico e a versão grega (Septuaginta) e, no tocante ao Novo Testamento, tem por base o Novum Testamentum Græece (mais conhecido como a “edição Nestle-Aland”, seus editores) e a Bíblia de Jerusalém (Editions du Cerf )—, a qual adotei desde que iniciei naquele mesmo ano o estudo da doutrina daimista, dada a riqueza de notas de rodapé e de informações históricas e teológicas constantes nela.