Mestre Irineu chamava os membros da Equipe da Mata que pertenciam ao Estado Maior, de fiscais da Rainha da Floresta. Estes homens eram os designados a se embrenharem no coração da selva amazônica, no período da lua nova, na busca da folha chacrona e do cipó jagube, para produzir o Daime.
O difícil acesso a floresta na época em que não existiam ramais, mas, varadouros, tornavam a missão árdua para um punhado de bravos com mãos calejadas pela rotina incansável, pés mergulhados nos igarapés, rostos marcados pelo bronze do sol, corpos suados pelo mormaço da selva, olhos voltados para o amanhã. “O jagube era trazido no lombo de cavalos”, contou Julio Carioca.
O relato de Julio Carioca – um dos feitores de Daime do Alto Santo – nos transporta para um tempo em que a simplicidade dos meios de transporte, como os cavalos, e a luta constante contra os desafios naturais moldavam não só a jornada, mas também a identidade de uma doutrina que se tornaria conhecida por sua essência espiritual, comunitária e ambiental.
A bravura e a fé inquebrantável desses “fiscais” são o alicerce sobre o qual a escola espiritual do Daime foi construída. “A força está comigo e a Doutrina está firmada”, canta João Pereira celebrando não apenas a conexão com a flora amazônica, mas também a formação de uma comunidade unida pela busca do que é sagrado.
Eu venho da floresta
Com meu cantar de amor
Eu canto é com alegria
A minha mãe que me mandou
A minha mãe que me mandou
Trazer santas doutrinas
Meus irmãos todos que veem
Todos trazem este ensino
Todos trazem este ensino
Para aqueles que merecer
Não estando nesta linha
Nunca é de conhecer
Estando nesta linha
Deve ter amor
Amar a Deus no céu
E à virgem que nos mandou
Do contexto nativo indígena e mestiço amazônico, Mestre Irineu, seguindo orientações espirituais, nacionaliza o nome ayahuasca, chá que passa a ser chamado de Daime, instituindo a partir de 1930 o mais importante processo de ressignificação e fundamentação do uso desta bebida. A linha espiritual que nos ensina a amar Deus no céu e a Virgem que nos mandou.
Segundo narrativas orais, antes de fazer sua passagem espiritual, Mestre Irineu fez recomendações aos seus seguidores sobre a gestão dos trabalhos por ele ordenados, em sua ausência, entre elas, determinado que nenhuma alteração fosse feita nos ritos por ele estabelecidos. “Estou deixando minha Doutrina pronta, ninguém invente moda, ninguém acrescente um pingo no i”, decretou.
O hinário o Cruzeiro, como uma importante expressão espiritual dentro da Doutrina, destaca em várias narrativas a força dos hinos como veículo de ensino e inspiração. “Aqui estou dizendo, aqui estou cantando, eu digo para todos e os hinos estão ensinando”, hino 125, “Aqui estou dizendo”.
O Mestre enfatiza a relevância da palavra e dos hinos na transmissão dos valores e ensinamentos por ele propostos. Fica claro que, na sua ausência material, os hinos e a prática cotidiana ajudam a manter viva a memória e os valores que ele representa.
Estou aqui
E eu não estando como é
Eu penso na verdade
Me vem tudo que eu quiser
A minha Mãe me trouxe
Ela deseja me levar
Todos nós temos a certeza
Deste mundo se ausentar
Eu vou contente
Com esperança de voltar
Nem que seja em pensamento
Tudo eu hei de me lembrar
Aqui findei
Faço a minha narração
Para sempre se lembrarem
Do velho Juramidam
Essa declaração simboliza o encerramento de um ciclo, onde o Mestre estava presente e o desejo de que a sua história e experiências perdurem na memória coletiva do grupo por ele qualificado. “Para sempre se lembrarem do velho Juramidam”.
O homem não sobrevive sem a memória.
Sou filho, sou filho,
Sou filho do Poder
A minha Mãe me trouxe aqui
Quem quiser venha aprender
Vou seguindo, vou seguindo
Os passos que Deus me dá
A minha memória divina
Eu tenho que apresentar
A minha Mãe que me ensina
Me diz tudo que eu quiser
Sou filho desta verdade
E meu Pai é São José
A Sexta-feira Santa
Guardemos com obediência
Três antes e três depois
Para afastar toda doença
O grande apelo feito pelo Mestre Irineu foi o da memória. Ele ordenou: “a minha memória divina eu tenho que apresentar”. A memória é essencial para nossa identidade, nossas relações e o modo como interpretamos o mundo ao nosso redor.
Se lembrar do velho Juramidam, aprendermos com suas narrativas sobre nossas vidas. “As palavras que eu disser aqui perante a este poder, estão escritas no astral para todo mundo ver”. A ciência é o Mestre Irineu. Ele é o elemento central de estudo, afinal, foi através dele que essa revelação chegou e continua chegando aos homens. O Daime é a via mais autêntica. E por essa razão, ele [mestre Irineu] seguindo orientações divinas, ordenou que sua Doutrina fosse ensinada de um polo ao outro: “içar essa bandeira em todo o universo”, decretou por meio de Germano Guilherme.
Este preâmbulo se faz necessário para que possamos entender o compromisso assumido pela Convenção Nacional dos Centros Independentes Praticantes da Doutrina do Daime – CONDAIME que tem como objetivo principal, criar condições para que os Centros filiados, possam se estabelecer como instituições de excelência, mantenedores e sustentadores da Doutrina Tradicional do Mestre Irineu, conforme estabelecido até o dia 06 de julho de 1971.
A finalidade de elaborar arcabouço de diretrizes e ordenamentos, conservando a imutabilidade dos princípios Doutrinários da Missão é um desafio. O próprio fundador em sua gestão comunitária e espiritual afirmou que subiu “serras de espinhos, pisando em pontas agudas”.
Dizem que entre espinhos nascem flores. O feitor de Daime Cripriano Carlos do Nascimento, caboco paraense que se apresentou ao batalhão do Mestre Irineu na década de 1960, em seu hinário batizado como Luz de Amor, afirma:
“Muitas flores estão murchando, poucas flores estão vibrando. A vibração quem dá é o Mestre a quem está lhe acompanhando.”
Tal missão se faz necessária porque a partir de 1974, com o processo de dissidências inaugurado por Sebastião Mota de Melo, muitos, saltaram para fora da linha original. “Quem quiser correr que corra, quem quiser pular que salte”, advertiu João Pereira.
Passou a existir na rotina dos trabalhos espirituais o consumo de outras substâncias psicoativas; a incorporação de espíritos; e a possibilidade de transformações e acréscimos nos rituais constituídos pelo fundador. Assumindo postura sacerdotal, Sebastião Mota figura como grande agente de expansão reconfigurando a Doutrina do Daime para a “Religião do Santo Daime”. Tudo o que Mestre Irineu não recomendou.
Nesses tempos difíceis, madrinha Peregrina pediu ajuda das autoridades brasileiras para o uso ritualístico e sustentável da ayahuasca, se manifestou contra a retirada ilegal da folha chacrona e do cipó jagube da floresta amazônica, bem como a comercialização do Daime.
Nunca é demais reafirmar que o Condaime compartilha da proposta de manter a doutrina imutável, fundamentando sua autoridade conforme o que ensinou o Mestre Fundador. Nesse sentido, esta instituição reconhece madrinha Peregrina como fiel legatária dos ensinamentos, guardiã incansável, senhora sábia, zeladora caprichosa da Doutrina de Mestre Irineu.
O apelo feito por madrinha Peregrina por regulamentação ambiental foi um passo importante. Esse tipo de iniciativa é fundamental não apenas para proteger as espécies de plantas utilizadas na produção do Daime, mas também para preservar os ecossistemas que elas habitam.
Um exemplo claro dessa intersecção entre cultura, identidade e sustentabilidade pode ser observada no Alto Santo, hoje, Área de Proteção Ambiental (APA). A maioria dos Centros que se alinham aos ensinamentos do Mestre Irineu têm “Reinado da folha e do jagube”, são autossustentáveis, posicionam-se em acordo as normas legais e o respeito ao meio ambiente. Nos tempos modernos, não precisa mais do lombo de cavalos para o transporte das plantas sagradas do meio da floresta. A estrada, como recomenda dona Zulmira Gomes, mãe de madrinha Peregrina, está limpa, enfeitada com flores “para o nosso Mestre passar”.
É possível conciliar a exploração dos recursos naturais com o respeito à biodiversidade e à cultura local. Essa relação simbiótica entre o homem e a natureza é vital para a preservação não só de uma forma de viver, mas de toda uma identidade cultural. Nos lembra a comunicação entre o Mestre Irineu e a Lua (Virgem da Conceição).
Outro fator relevante no manifesto de madrinha Peregrina diz respeito a identificação dos que se perfilam na linha espiritual do Mestre Irineu e os que insistem nesse vinculo mais frouxo, que fez surgir uma circulação maior de seguidores entre uma denominação e outra, trazendo neste mapa, deformidades desde a confecção da bebida sagrada aos hinos, as vestimentas, regras disciplinares, cânticos, ritmos, baile, praticamente em tudo que é considerado imaterial.
Essa situação destaca a importância do diálogo entre os centros originários e o esforço dos “Fiscais da Rainha da Floresta” que se baseiam nos princípios da dieta: “três antes e três depois para afastar todas as doenças”; a não mistura do Daime com qualquer outra substância alteradora da consciência; o não culto à personalidade dos dirigentes de Centro evitando a idolatria e o fanatismo; a não comercialização do Daime.
Os Incas, de onde se origina a ayahuasca e toda essa narrativa de beleza profunda de conexão da natureza e a espiritualidade nos ensinam que:
“O universo criado e ordenado atua em diferentes planos e distintas funções de uma série de espíritos superiores que reagem com as forças da natureza, facilitando ao homem o sustento assegurado pela convivência em grupo. Uns que atuam no Plano Celestial, outros na própria terra, onde vivem os homens”.
Para finalizar cito Pedroso (1999) que em sua dissertação de mestrado intitulada “A carga cultural compartilhada”, afirma que “um povo que não tem raízes acaba se perdendo no meio da multidão. São exatamente as nossas raízes culturais, familiares, sociais, que nos distinguem dos demais e nos dão uma identidade de povo, de nação”.
Que a nova configuração de “Fiscais da Rainha da Floresta” se aperfeiçoe na terra como “espíritos superiores”, aprendam e ensinem a convivência em grupo. Investir nas raízes da Doutrina fundada pelo Mestre Irineu é garantir que, mesmo em meio à multidão, essa escola espiritual permaneça viva e forte, guiando-nos em direção à luz.
Há a exigência de diálogo e colaboração entre diferentes grupos, incluindo líderes espirituais, cientistas, ambientalistas e comunidades indígenas. Maria Marques Vieira nos convida para “se recordar e começar do abc”. Nesta faculdade divina o Daime, somente o Daime é o professor.
Jairo Carioca é jornalista, assessor de imprensa e escritor, autor do livro “Vovô Irineu – todos vão se recordar e começar do abc”. Nasceu e se criou nos verdes campos do Alto Santo.

Belíssima colocação deste movimento em um texto que contempla de forma perfeita o que penso sobre o que diz respeito a seguir a Doutrina deixada pelo nosso Chefe Imperador. Parabéns Jairo Carioca !
Texto perfeito, esclarecedor e acolhedor. Vemos neste texto a importância de se estudar e buscar a verdade nesta doutrina, por vezes já modificada. É sempre bom ler textos vindos de fontes seguras, assim podemos afirmar, com propriedade, o que foi realmente deixado pelo nosso Mestre Irineu. Parabéns à todos os envolvidos neste que é um processo importantíssimo para toda a comunidade daimista!
Excelente texto
Simples e esclarecedor, define a situação atual da doutrina originária em relação as diversas dissidências, como também inicia uma distinção clara e evidente da doutrina quanto a designação ‘Daime’ de ‘Santo Daime’.
Muito bom e esclarecedor
Muito bom!!